Li essa crônica pois era leitura obrigatória na escola, e me fez refletir um pouco.
Alguma coisa ia lhe acontecer. Trinta e sete anos, saúde perfeita, ganhando dinheiro como nunca — alguma coisa estava errada. O mundo todo em crise e ele ali, sem um problema.
Ou com um problema só: a ausência de problemas.
Alguma estavam lhe preparando. Ia ter um enfarte fulminante. Perder o emprego. Perder uma perna. Estava tudo bem demais. Ele era o único homem da sua idade com os quatro avós ainda vivos! Aquilo não era natural. Alguma estavam lhe preparando. E não demoraria.
Alguém sentou ao seu lado no bar e disse:
— Você não me conhece.
Era um homem bonito, mais moço do que ele. O homem estendeu a mão e se apresentou.
— Eu sou o Carlos.
— Muito prazer...
— Sua mulher deve ter lhe falado a meu respeito.
— Não, não falou.
O homem fez uma cara de desapontamento. Disse:
— Ela me prometeu que lhe contaria tudo. Assim fica mais difícil...
Ele sentiu, com alívio, que sua tragédia chegava. Então era isso. Sua mulher o enganava. Era
melhor do que um enfarte.
— Quem sabe você mesmo me conta tudo, Carlos?
— Bom, não há muito para contar. Nos conhecemos...
— Onde?
Estava tomado por uma espécie de volúpia de sofrimento. Queria saber tudo. Queria ser
arrasado pelos detalhes.
— Num shopping.
Ele gemeu baixinho. Perfeito. Nas suas intermináveis tardes fazendo compras enquanto ele
trabalhava, ela também namorava. Carlos continuou:
— Aconteceu. Não pudemos evitar. Ela me ajudou a escolher uma gravata, começamos a
conversar e... Aconteceu.
— Há quanto tempo vem acontecendo?
— Três meses.
— Motéis?
— Às vezes. E no meu apartamento, quando mamãe não está.
Ele tentou visualizar sua mulher num motel com aquele homem. A mãe dos seus filhos numa
cama redonda e refletida no espelho do teto, com outro. O banho de óleos. Teria banho de óleos?
As tardes de loucura e prazer. Era demais. Ele não aguentava! Pediu mais detalhes.
— A iniciativa foi dela?
— Não, minha. Ela resistiu bastante.— Não tente me consolar — suplicou ele.
— Decidimos que você precisava saber. Ela lhe respeita demais. Aceita o divórcio, a
separação dos filhos...
Sim, sim. Os filhos. Teria que ser pai e mãe para eles. Apoiá-los para que vencessem o trauma
da separação. Sua vida seria um inferno dali para diante. Não se suicidaria para poupar as
crianças e sempre protegeria o nome da mulher na frente deles. Mas por dentro estaria destruído.
— A Cláudia ia lhe falar sobre nós ontem, mas acho que não teve coragem. Ela me contou que
você vinha sempre a este bar por esta hora e...
— Que Cláudia?
— Como, que Cláudia? A sua mulher.
A mulher dele se chamava Sônia.
— Que foi? — perguntou Carlos.
— Nada, nada.
— Escute, Raul. Você deve reagir. Não é o fim do mundo. Eu sinto muito, mas divórcios
acontecem a toda hora. Vá para casa, converse com a Cláudia...
— Olhe aqui. Eu não preciso dos seus conselhos, entendeu? Você já fez a sua parte, destruindo
o meu lar, destruindo a minha vida. Agora é comigo. Dê o fora antes que eu...
Carlos deu o fora. Ele chamou o barman e pediu outro uísque. Duplo. Era a primeira vez que
repetia o uísque desde que começara a frequentar o bar. O barman estranhou:
— Problema, seu Mário?
Ele não se conteve. Quase soluçando, com os olhos cheios de lágrimas, respondeu:
— Acabei de saber uma coisa terrível. Finalmente!
Luiz Fernando Veríssimo
Sabe a conclusão que cheguei? Uma coisa meio óbvia que quase ninguém enxerga, o ser humano vive marcado pela angústia de pensar que há algo de errado com si próprio.
Srta.Scarlet
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