14/04/2014

O enganado


   

     Li essa crônica pois era leitura obrigatória na escola, e me fez refletir um pouco.  

     Alguma coisa ia lhe acontecer. Trinta e sete anos, saúde perfeita, ganhando dinheiro como nunca — alguma coisa estava errada. O mundo todo em crise e ele ali, sem um problema.
     Ou com um problema só: a ausência de problemas.
     Alguma estavam lhe preparando. Ia ter um enfarte fulminante. Perder o emprego. Perder uma perna. Estava tudo bem demais. Ele era o único homem da sua idade com os quatro avós ainda vivos! Aquilo não era natural. Alguma estavam lhe preparando. E não demoraria.

     Alguém sentou ao seu lado no bar e disse:
     — Você não me conhece.
     Era um homem bonito, mais moço do que ele. O homem estendeu a mão e se apresentou.
     — Eu sou o Carlos.
     — Muito prazer...
     — Sua mulher deve ter lhe falado a meu respeito.
     — Não, não falou.
     O homem fez uma cara de desapontamento. Disse:
     — Ela me prometeu que lhe contaria tudo. Assim fica mais difícil...
     Ele sentiu, com alívio, que sua tragédia chegava. Então era isso. Sua mulher o enganava. Era
melhor do que um enfarte.
     — Quem sabe você mesmo me conta tudo, Carlos?
     — Bom, não há muito para contar. Nos conhecemos...
     — Onde?
     Estava tomado por uma espécie de volúpia de sofrimento. Queria saber tudo. Queria ser
arrasado pelos detalhes.
     — Num shopping.
     Ele gemeu baixinho. Perfeito. Nas suas intermináveis tardes fazendo compras enquanto ele
trabalhava, ela também namorava. Carlos continuou:
     — Aconteceu. Não pudemos evitar. Ela me ajudou a escolher uma gravata, começamos a
conversar e... Aconteceu.
     — Há quanto tempo vem acontecendo?
     — Três meses.
     — Motéis?
     — Às vezes. E no meu apartamento, quando mamãe não está.
     Ele tentou visualizar sua mulher num motel com aquele homem. A mãe dos seus filhos numa
cama redonda e refletida no espelho do teto, com outro. O banho de óleos. Teria banho de óleos?
     As tardes de loucura e prazer. Era demais. Ele não aguentava! Pediu mais detalhes.
     — A iniciativa foi dela?
     — Não, minha. Ela resistiu bastante.— Não tente me consolar — suplicou ele.
     — Decidimos que você precisava saber. Ela lhe respeita demais. Aceita o divórcio, a
separação dos filhos...
     Sim, sim. Os filhos. Teria que ser pai e mãe para eles. Apoiá-los para que vencessem o trauma
da separação. Sua vida seria um inferno dali para diante. Não se suicidaria para poupar as
crianças e sempre protegeria o nome da mulher na frente deles. Mas por dentro estaria destruído.
     — A Cláudia ia lhe falar sobre nós ontem, mas acho que não teve coragem. Ela me contou que
você vinha sempre a este bar por esta hora e...
     — Que Cláudia?
     — Como, que Cláudia? A sua mulher.
     A mulher dele se chamava Sônia.
     — Que foi? — perguntou Carlos.
     — Nada, nada.
     — Escute, Raul. Você deve reagir. Não é o fim do mundo. Eu sinto muito, mas divórcios
acontecem a toda hora. Vá para casa, converse com a Cláudia...
     — Olhe aqui. Eu não preciso dos seus conselhos, entendeu? Você já fez a sua parte, destruindo
o meu lar, destruindo a minha vida. Agora é comigo. Dê o fora antes que eu...
     Carlos deu o fora. Ele chamou o barman e pediu outro uísque. Duplo. Era a primeira vez que
repetia o uísque desde que começara a frequentar o bar. O barman estranhou:
     — Problema, seu Mário?
     Ele não se conteve. Quase soluçando, com os olhos cheios de lágrimas, respondeu:
     — Acabei de saber uma coisa terrível. Finalmente!

Luiz Fernando Veríssimo

     Sabe a conclusão que cheguei? Uma coisa meio óbvia que quase ninguém enxerga, o ser humano vive marcado pela angústia de pensar que há algo de errado com si próprio. 

Srta.Scarlet

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